quarta-feira, 2 de maio de 2012

Sampaulo, dez anos depois


O texto abaixo foi escrito pelo jornalista Jayme Copstein em 7 de setembro de 2009 e publicado no site Coletiva.net:

Sampaulo está morto há exatos dez anos. Com ele convivi e fomos amigos durante 43 anos. Encontramo–nos pela primeira vez em 1956, na redação do jornal a Hora (assim mesmo, com o “a” minúsculo), onde ele desempenhava o duplo papel de chargista e diagramador. Na imprensa daquela época, pelo menos no Rio Grande do Sul, considerava–se o humor atividade diletante. As empresas não admitiam pagar só “por aquilo”. Não tinham consciência do conteúdo social e político das piadas e dos desenhos e o quanto atraíam os leitores.
Tinha sido assim com o Zeca Sampaio, irmão do Sampa, que arrancou gargalhadas com o homenzinho mijão da Revista do Globo, mas preferiu ser funcionário da Justiça Eleitoral, para garantir o pão de cada dia; com o Saul Silva, o Mr. Ioso,  trabalhar com ele, para confeccionar títulos, cartolas e legendas.
Como estávamos na idade de reformar o mundo, ele tinha 25 anos, eu 28 – aliás, jamais deixamos de reformar o mundo apesar do tempo decorrido, e acho que esse é o segredo da nossa sobrevivência – adivinhávamos que aquele jornal não teria longa vida. E fomos filosofar na mesa do bar mais próximo, na avenida São Pedro, onde nos identificamos pelo amor à profissão e pela identidade da visão política.
Aquela conversa jamais terminou. Foi continuada sempre, quer estivéssemos trabalhando no mesmo veículo ou não. Frequentávamos os mesmos ambientes, desde a famosa “mesa da diretoria” do restaurante Dona Maria ao bar da Associação Riograndense de Imprensa, que ele frequentou religiosamente aos sábados de manhã, até adoecer. Lá deixou também o registro do seu talento, fazendo rir seus colegas, entre eles particularmente o jornalista Alberto André, presidente da entidade, a quem presenteava com uma caricatura nos aniversários redondos – 50 anos, 60 anos. Essas caricaturas estão lá, emolduradas, e integram o patrimônio da entidade.
Encontrávamo–nos também, na cerimônia de entrega dos Prêmios ARI de Jornalismo. Durante os 40 anos em que o concurso tem sido realizado, o Sampaulo foi primeiro lugar em 20 deles. E sempre que também me tocava uma premiação, ele tinha uma frase característica – Estamos aí. A frase fora herdada da amizade com o Agenor, adolescente que fora contínuo do velho Diário de Notícia.
O Agenor ganhava salário mínimo, o Diário atrasava sempre o pagamento, mas ele, como o Sampaulo, não reclamava de nada. Quando lhe perguntavam como andavam as coisas, o Agenor respondia – “Estamos aí!”. A frase apaixonou o Sampaulo, que inclusive a tornou nome de uma seção que fez para a Folha da Tarde. E sempre que desejava comemorar o que fosse, falava – "Estamos aí."
Uma vez tentei entrevistar o Sampaulo. Era fevereiro, véspera do dia de Nossa Senhora dos Navegantes, nos cinemas, fazendo furor, o filme Tubarão. Acabou não saindo entrevista alguma, ele fez na hora uma charge, me deu o original de presente.
Tentei fazê-lo falar sobre o seu processo de criação. Ele tinha acabado de ganhar prêmio, pela primeira vez, no Salão Internacional do Canadá, com uma charge sobre a criação do mundo: Adão e Eva atrás de um arbusto, perplexos, vendo sair da “máquina de fazer vida”, bichos estranhos como o camelo, o rinoceronte, o hipopótamo. Adão comenta: “O ‘Velho’ não está nos dias dele”.
Perguntei como percebia este lado tão engraçado das coisas. Lembro–me de ter falado no Papa João 23, também humorista, que liquidou a malquerença do cardeal Tardini com uma piada. Tardini sempre se referia a ele como “aquele lá de cima”, apontando o 2º andar onde o Papa tinha seus aposentos privados. João 23 chamou Tardini e lhe disse: “Aquele lá de cima é nosso amado Senhor. Eu sou apenas aquele lá do segundo andar”.
Chegou–se à conclusão de que o humor nasceu na primeira cirurgia, quando o ”Lá-de-cima” esculpiu a mulher de uma das costela de Adão. Sampaulo me disse que este hipotético flagrante poderia ser criado de várias maneiras. Bastaria desenhar uma mulher sedutora e pôr expressão admirativa em Adão olhando para cima, com a legenda “Quem sabe, sabe”, se o chargista estivesse de bom humor. Ou então, se estivesse de mau humor, mudar a legenda para “Precisava complicar?”.
Não precisava, não. Bastava não deixar morrer gente como o Sampaulo.

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